Naquele dia, entrei num café antigo, com uma sensação de “tem que ser”. Hesitei com a minha certeza mas decidido abri a porta, como se abrisse a capa de um livro, e penetrei nos castanhos do café, ao mesmo tempo que um anjo colorido levantava voo dos gonzos da porta. Os clientes agrupavam-se nas mesas como nas carteiras da escola. Só faltava alguém desafiar alguém para a batalha naval. Por detrás do ambiente caloroso e quase sorridente existia uma grande melancolia. Os personagens transformavam-se à mesa. Sonhavam à vista dos outros.
Procurei uma mesa mais isolada. Mal adivinhava que era mágica e esperava por mim.
No café creme silencioso da manhã, pedi a bica curta ao mesmo tempo que caíam as notícias de uma prateleira com telefonia. Servi-me abundantemente na praia do açúcar que enchia o açucareiro.
Por entre instantes de porcelana, de vapor e creme, reparei numa mulher, com a cabeça da Rita Hayworth, sentada apenas com uma mesa vazia entre nós e que parecia estar a representar uma nova versão da cena em que surge pela 1ª vez em “Gilda” – quando levanta a cabeça de um modo súbito e fascinante.
Pedi outra bica, consciente de que aquele era um mundo em extinção e bebi a maré do momento devagar, aspirando a fumegação cafeínica e saboreeando os vários tons de castanho. O creme que sobre nadava o café, a espuma no fundo da chávena, as mesas, as cadeiras, as portas e as pessoas.
De súbito fiz um grande plano ao olhar da mulher com a cabeça da Rita Hayworth - que lia à luz da voz da Billie Holiday que o rádio agora tocava. Ela retribuiu num plano sequência sem fim a filmar-me o pensamento contra o canelado da parede. Continuámos a entregarmo-nos nos olhares até ao momento em que nos sentámos simultaneamente na mesma mesa – a que estava entre nós. Sentámo-nos confundindo as pernas com as da mesa. Então a sala escureceu rapidamente, como para um final do dia enevoado e, do tecto, destacou-se um foco de luz cor de licor de "pepermint". Era um jacto luminoso que contrastava com o castanho carregado da sala e iluminava exclusivamente a nossa mesa. Na atmosfera verde o sorriso dela actuava a solo mantendo suspenso o silêncio dos outros. A sala preparava-se para assistir a um filme. O nosso.
Então... conversámos calados sobre um outro tempo em que, após termos descido ao fundo do vidro da noite, encontrávamo-nos num café, como este, onde tínhamos arranjado uma palavra nova enquanto aspirávamos o aroma do café moído.
Obviamente tinha-te reencontrado mais uma vez.
Um perante o outro - pensámo-nos e de novo senti o doce sabor da liberdade e da insurreição de outrora. Ao mesmo tempo as nossas imagens esbatiam-se, consumidas. Nitidamente estávamos a ficar invisíveis. A desaparecer. Ainda bem. Era uma aventura esperada. O problema afinal não era procurar mas encontrar. E ficarmos sós depois.
Assim livres, provámos novamente a vida...
VT
I´m in the mood for Love - Julie London
7 comentários:
Excelente fotografia acompanhada de um excelente texto. Quase dá para saborear o café…
Mais uma boa fotografia e um vislumbre de um mundo paralelo, como diria provavelmente um amigo comum, em que o autor nos mostra como convive com os fantasmas dos filmes e das músicas da sua vida.
"Gilda" ... amor em tempo de guerra!
Bela história de amor.
Bom domingo
Maria
Aqui é tudo muito bonito. Estou lendo aos poucos, por tempo até.
Mas já gostei demais do que vi..ahh, histórias de amor...impossivel não parar para ler.
Me sento, e tomo o café.
Um abraço.
Para além de agradecer os simpáticos comentários de Alice, JJ e Maria não posso deixar de dar as boas vindas a Sil que comenta pela 1ª vez. Espero que nos continue a visitar... a cadeira está sempre a sua espera.
Abraço
VT
Impossível não começar a gostar de café depois de toda a magia que aqui partilha...
Sinceros parabéns.
MJM
Obrigado MJM por partilhar as suas emoções e... ter passado a gostar mais de café.
Bem haja
VT
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