segunda-feira, 8 de julho de 2013

A neblina

Corredor do Serviço de Observações do S. Urgência do antigo Hospital de S. José na década de 1970 (a propósito do livro recentemente editado sobre o “espírito” dos antigos Hospitais Civis de Lisboa).

Sleep - Lisa Gerrard

Às vezes durante os sonhos regresso lá. Como se nunca de lá tivesse saído. E continuo a ouvir a dor nos olhos do Doentes no S. Urgência do H. de S. José onde fazia “Banco”. Um pesadelo de côr negra e ao vivo que pouca gente, hoje, imaginaria. Sem condições logísticas parecia um Hospital de Campanha onde se operava de porta aberta para o corredor do S. de Observações (S.O.) que mais parecia um campo de refugiados de guerra onde as macas se amontoavam lado e a lado e os Doentes ficavam deitados ao lado do sofrimento do vizinho. Eram os que já não cabiam em 4 pequenos cubículos, ao lado do corredor central, que se denominavam também S.O. de Homens e Mulheres. Sombras na penumbra cheirando a sangue, suor e miséria. Regresso às noites sozinho escalado num dos Balcões (de Homens e de Mulheres) que atendiam a grande Lisboa e o Sul inteiro do país numa sala subdividida em 3 espaços, na companhia de bêbados, sem abrigo, traumatizados diversos, asmáticos, etc. Como foi possível conseguirmos tratar aquelas pessoas todas só com a vontade de fazer o melhor e quase o impossível durante 24 horas seguidas de descida ao inferno da dor humana encerrada nos antigos claustros do edifício. Nos sonhos regresso à neblina que invadia os corredores escuros no frio dos Invernos para distribuir mais cobertores aos que aguardavam o veredicto do seu Destino.
Mas o extraordinário era o “espírito” de toda uma equipa de médicos e enfermeiros que com saber e um enorme profissionalismo davam de si o melhor num ambiente de rigor vigiado por grandes “Mestres” na Arte Médica. E apesar de tudo - todos os que lá trabalhavam sorriam com uma disposição positiva e contagiante. É uma fase que fica na História da Medicina e da Saúde em Portugal. Nunca mais assisti a exemplos de tão grande profissionalismo. Hoje as condições logísticas e tecnológicas melhoraram mas nunca mais encontrei aquele “espírito” que unia aqueles profissionais naquela altura (décadas de 1960 e 1970) no “Banco” de S. José. A não ser nos quadros sempre a preto e branco que rebobino, durante os meus sonhos, nos quais descortino a minha figura ainda ao lado de Doentes cuja história sei de cor no Banco de S. José. Como se tivesse ficado lá.

7 comentários:

Anónimo disse...

Menos condições, menos de tanta coisa, ...mas maior humanidade..
Quanto mais se tem (no acessório), mais falta (no essencial).
Paula Alcarpe

Anónimo disse...

Esse sentido Sagrado da Medicina tem que voltar
Rosa Rodrigues

Anónimo disse...

Simplesmente adoro esta foto Leva-me a viajar no tempo onde me fiz cuidadora Onde aprendi a cuidar de gente com carinho,dedicação e muito empenho. Onde o que importava era fazer sempre bem e cada vez melhor Onde o espírito de entre ajuda era o lema Enfim saudade....
Fatima Silva

Anónimo disse...

O hospital de S. José sempre funcionou como hoje ?
(ou seja, acolhe tudo o que é acidentes e desastres grave em Lisboa ... ) ... As duas vezes que visitei o hospital achei tudo aquilo de uma brutal violência, mas o pessoal que lá trabalha é uma jóia.
Isabel Maria Frihetsdóttir

Anónimo disse...

Era e continua a ser brutal, menos brutal que na década de 1970, mas mesmo assim continua no século XX...
Maria Virgínia Machado

Anónimo disse...

Ainda bem que a neblina faz parte dos s/ sonhos, Vasco. Ainda bem que "vive" e está "presente". Marcel Proust - tem uma citação curiosa: " O sono é como uma outra casa que poderíamos ter e onde, deixando a nossa, iríamos dormir". Tudo de bom.
Luísa Barbosa

Anónimo disse...

Depois de ler o texto, não encontro mais palavras para descrever o "turbilhão" que me invade o pensamento...
Virgilio Aleixo