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Black Coffee - Ella Fitzgerald
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Black Coffee - Ella Fitzgerald
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Na década de 1990, o
aparecimento de estações privadas de TV com a consequente oferta de um maior
leque de programas e disputa de audiências, acentuou a ligação entre o
indivíduo e o ecrã da televisão.
Em 1990, 91% dos lares
portugueses possuíam televisão e 25% tinham videogravador. Segundo J. Machado
Pais e colaboradores, em 1994, os lisboetas passavam 15 horas e 27 minutos
por semana (em média) em frente à televisão, 90,3% viam regularmente TV e 70%
possuíam gravador-leitor de cassetes de vídeo. Nesse ano, 95,9% dos lares
portugueses tinha TV. Na Europa, o nosso país é o que
possui a população mais dependente. Diminuiu,
nos cafés, a função de local de noticiário directo porque a televisão passou a propiciar
uma vida cada vez menos socializante, isolando o indivíduo. Com o
advento da Net e das redes sociais os cafés cada vez são menos lugares de convívio
“ao vivo e a cores” pois o reino virtual pode contaminar facilmente também aqueles
espaços – roubando, muitas vezes, o verdadeiro frente a frente entre gente de
carne e osso.
Progressivamente tornou-se
mais difícil delimitar o café típico, dentro das actuais arquitecturas de
consumo, em que as funções se sobrepõem. As pastelarias com acesso à Net e "manjedoura"
na qual as pessoas são despachadas, substituem progressivamente os cafés nos
quais se podia estacionar à mesa o espírito e entrar num ritual de convívios e
encontros. Apareceram estruturas híbridas: cafés-restaurantes,
cafés-pastelaria, cafés-charcutaria, cafés-leitaria, cafés-tabaco, cafés-bombas
de gasolina, cafés-estações de autocarro, cafés-bares, ciber-cafés.
Diminuíram as relações entre
os indivíduos aumentando o "automático", em que a margem de
criatividade pessoal é progressivamente menor. Nos novos espaços o mais
importante é a forma, a imagem e o lucro. Os cafés passam a usar-se e a
despir-se - como os fatos - rapidamente. Apesar de se manterem como locais
onde são possíveis ainda "encontros imediatos", o café consome um
tempo mais pequeno na vida de cada um.
O tempo de café é, hoje,
racionalizado. O espectáculo é quase apenas o consumo em si, e menos o dos
"habitués". Assim as pessoas vão-se uniformizando, o convívio vai-se
extinguindo (como os cafés típicos), perdem-se os diferentes "tipos"
de fregueses e os rituais entre estes. Desaparecem, sobretudo nas grandes
cidades, as tertúlias e as figuras típicas dos cafés. Hoje, no reino do
efémero, a tradição deixa - progressivamente - de contar, e os cafés oferecem
outro tipo de produtos e de espaços.
Há porém, ainda alguns cafés
que continuam a servir para reuniões, conversação, filosofia, escrita, leitura,
estudo, mantendo o seu estatuto único onde se confunde o público com o privado.
Esses raros estabelecimentos, que sobreviveram, podem continuar a receber
artistas, literatos, intelectuais, contadores de histórias, caçadores ou
pescadores - afinal os seus habitantes de sempre.
Jardins interiores partilhados
onde clientelas cristalizadas no sabor a cimbalino se misturam com os
croissants, sandes ou licores, os cafés podem ainda ser lugares de culto, onde
realizamos o nosso teatro de todos os dias. Sobretudo aqueles cafés que
conservam uma decoração da primeira metade do século XX, mantendo uma poesia
que emana da atmosfera especial. Esses resistentes permitem-nos entrar noutras
épocas (ainda com alguma serenidade) recuando no tempo ao passarmos pela porta
e proporcionando - quem sabe - o prazer de um encontro inesperado, de um gesto
ainda humano. Aí podemos comunicar, usufruindo de um lugar de liberdade pelo
preço de uma bica.
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