segunda-feira, 28 de abril de 2014

As Tertúlias de Café

Tertúlia no Café Central das Caldas da Rainha no início da década de 1990. Da esquerda para a direita: Mapril Figueiredo, Ernesto Moreira, Artur Maldonado Freitas, António Teles.
***

Black Coffee - Ella Fitzgerald
***
Na década de 1990, o aparecimento de estações privadas de TV com a consequente oferta de um maior leque de programas e disputa de audiências, acentuou a ligação entre o indivíduo e o ecrã da televisão.
Em 1990, 91% dos lares portugueses possuíam televisão e 25% tinham videogravador. Segundo J. Machado Pais e colaboradores, em 1994, os lisboetas passavam 15 horas e 27 minutos por semana (em média) em frente à televisão, 90,3% viam regularmente TV e 70% possuíam gravador-leitor de cassetes de vídeo. Nesse ano, 95,9% dos lares portugueses tinha TV. Na Europa, o nosso país é o que possui a população mais dependente. Diminuiu, nos cafés, a função de local de noticiário directo porque a televisão passou a propiciar uma vida cada vez menos socializante, isolando o indivíduo.  Com o advento da Net e das redes sociais os cafés cada vez são menos lugares de convívio “ao vivo e a cores” pois o reino virtual pode contaminar facilmente também aqueles espaços – roubando, muitas vezes, o verdadeiro frente a frente entre gente de carne e osso.
Progressivamente tornou-se mais difícil delimitar o café típico, dentro das actuais arquitecturas de consumo, em que as funções se sobrepõem. As pastelarias com acesso à Net e "manjedoura" na qual as pessoas são despachadas, substituem progressivamente os cafés nos quais se podia estacionar à mesa o espírito e entrar num ritual de convívios e encontros. Apareceram estruturas híbridas: cafés-restaurantes, cafés-pastelaria, cafés-charcutaria, cafés-leitaria, cafés-tabaco, cafés-bombas de gasolina, cafés-estações de autocarro, cafés-bares, ciber-cafés.
Diminuíram as relações entre os indivíduos aumentando o "automático", em que a margem de criatividade pessoal é progressivamente menor. Nos novos espaços o mais importante é a forma, a imagem e o lucro. Os cafés passam a usar-se e a despir-se - como os fatos - rapidamente. Apesar de se manterem como locais onde são possíveis ainda "encontros imediatos", o café consome um tempo mais pequeno na vida de cada um.
O tempo de café é, hoje, racionalizado. O espectáculo é quase apenas o consumo em si, e menos o dos "habitués". Assim as pessoas vão-se uniformizando, o convívio vai-se extinguindo (como os cafés típicos), perdem-se os diferentes "tipos" de fregueses e os rituais entre estes. Desaparecem, sobretudo nas grandes cidades, as tertúlias e as figuras típicas dos cafés. Hoje, no reino do efémero, a tradição deixa - progressivamente - de contar, e os cafés oferecem outro tipo de produtos e de espaços. 

Há porém, ainda alguns cafés que continuam a servir para reuniões, conversação, filosofia, escrita, leitura, estudo, mantendo o seu estatuto único onde se confunde o público com o privado. Esses raros estabelecimentos, que sobreviveram, podem continuar a receber artistas, literatos, intelectuais, contadores de histórias, caçadores ou pescadores - afinal os seus habitantes de sempre.
Jardins interiores partilhados onde clientelas cristalizadas no sabor a cimbalino se misturam com os croissants, sandes ou licores, os cafés podem ainda ser lugares de culto, onde realizamos o nosso teatro de todos os dias. Sobretudo aqueles cafés que conservam uma decoração da primeira metade do século XX, mantendo uma poesia que emana da atmosfera especial. Esses resistentes permitem-nos entrar noutras épocas (ainda com alguma serenidade) recuando no tempo ao passarmos pela porta e proporcionando - quem sabe - o prazer de um encontro inesperado, de um gesto ainda humano. Aí podemos comunicar, usufruindo de um lugar de liberdade pelo preço de uma bica.

Sem comentários: