Balcão de Mulheres na Urgência do Hospital de S. José em 1975.
Elegy - Lisa Gerrad and Patrick Cassidy
Elegy - Lisa Gerrad and Patrick Cassidy
Em meados do século XX (e até
à década de 1970) estar de Banco nos Hospitais Civis de Lisboa (HCL) era uma
honra, uma oportunidade única de aprender com os melhores e algo que trazia
também a respeito profissional e a consideração técnica. Para usufruir desse
privilégio trabalhávamos 24 horas seguidas GRATUITAMENTE no Banco (forma de
designar o S. Urgência que aparece documentado desde 1633 - mas se generaliza
na gíria médica no H. de Todos os Santos cuja Escola o transmite aos HCL e se
transmite depois a todos os restantes Hospitais) dos HCL. O Banco realizava-se
no H. S. José e tinha, na década de 1970, cerca de 800 Doentes, diariamente,
que ali acorriam - oriundos da grande Lisboa e do sul inteiro do Pais - e eram
tratados por uma equipa médica com cerca de 40 elementos, para além de um pequeno
exército de enfermeiras que, tal como os outros profissionais, não paravam numa
correria constante a acudir aos Doentes. Era um caos muito bem dominado e
coordenado pelo Cirurgião que era Chefe de Equipa.
Entrava-se por um pequeno
átrio com porta aberta para a rua e onde ficava os gabinetes da polícia e a
Secretaria onde se faziam as inscricções. Daí passava-se aos “Balcões” de
Homens e Mulheres onde os Doentes eram alvo de uma triagem especial - porque ou
eram aí tratados, ou passavam para os S.O (Salas de Observação) ou iam directos
para o Bloco Operatório que ficava ao lado da sala de pequena cirurgia - do
lado direito do corredor do S.O. Adivinhamos a gravidade dos Doentes pela
correria mais ou menos acelerada dos bombeiros entrecortada pelo eco de gritos
e pelo estrondo das macas a bater nos batentes das portas para abrir caminho.
Operava-se muitas vezes com a
porta aberta da sala e observavam-se as cirurgias com uma mão a tapar a boca.
Depois de iniciados a coser cabeças nas pequenas cirurgias passávamos a
executar as operações mais simples como a apendicite aguda (que chamávamos de “asa
de mosca”), hérnias, pequenas amputações etc.). Assim acabávamos preparados
para as várias áreas clínicas. Foi assim que apesar de estar a fazer o
Internato de uma Especialidade médica (Gastrenterologia) já tinha Currículo cirúrgico.
Claro que as cirurgias mais complexas eram executadas por grandes cirurgiões
muito experimentados. No 1º andar ficavam o “quarto dos médicos” e o “quarto
das médicas” mais graduados - a quem os Internos recorriam quando surgiam os
casos graves. Com porta aberta para o “Pátio do Relógio” ficava a sala de
jantar com uma mesa comprida com o Chefe de Equipa no topo, a partir do qual, e
numa sequência decrescente de hierarquias sentavam-se os restantes médicos. A
servir estas verdadeiras “orquestras clínicas” surgiam as “Micas” - nome
carinhoso com que designávamos as empregadas da cozinha.
Os Balcões tinham 3 salas
exíguas e contíguas onde eram despejados e observados simultaneamente: bêbados,
acidentados, histerias, febres, diarreias, etc. Os bêbados eram um problema
porque incomodavam os Doentes que mereciam atenção e chegavam a “partir a
mobília” quando se apresentavam agressivos. Em geral administrava-se Coramina
endovenosa, para os “acordar”, o que lhes provocava crises de espirros, mas
havia quem lhes injectasse diuréticos para quando os ébrios aflitos pedissem
para urinar dizer-se que não haviam casas de banho, obrigando-os a dirigirem-se
para o exterior do Banco e deixando de perturbar o atendimento geral.
O meu amigo Luis Damas Mora
(cirurgião ilustre) conta uma história que é paradigmática do ambiente que se
vivia no Banco: “Na década de 1960 visitou o Banco de S. José um reputado
cirurgião professor em Lyon que ficou “espantado” perante um espectáculo clínico
a que nunca tinha assistido de uma desorganização muito bem organizada, a que
chamávamos S. Urgência, e perguntou: “- Et les machines?”. Referindo-se a
ventiladores que nem existiam ainda em Portugal. “- Pas de machines”
responderam-lhe. “- Quel domage! Quel domage!”, lamentou o professor. Mais
adiante, ao reparar na grande confusão e promiscuidade, perguntou: “- Et les
infeccions? - Ah! Mais cést que nous n´avons pas presque d´infeccions”. Então
professor exclamou: “- Je comprends. Cést que les bactéries, eles se mangent
les unes les autres”… Mais tarde, porém, ao assistir à abordagem
multidisciplinar a um politraumatizado grave em choque, como se tratasse de “um
bailado dirigido por um coreógrafo genial” com médicos de várias especialidades
e enfermeiros trabalhando intensivamente e simultaneamente vários órgãos e
membros do Doente como se tudo estivesse bem ensaiado desde há muito e com
enorme qualidade técnica, o professor acabou embasbacado a murmurar: “-
Superbe! Superbe!”. Era assim o Banco em S. José: lado a lado, o pior, por
vezes inacreditável, e o melhor, por vezes sublime.”
3 comentários:
Belíssima música, para "embalar" este texto do "que foi". Nas circunstâncias descritas, o cinismo da afirmação "as bactérias comem-se umas às outras" só podia, mesmo, vir dum francês, que, todavia, acabou por se render (superbe!). É pena assistir à destruição dum SNS com umas tais raízes.
Belíssima música, para "embalar" este sentido texto do "que foi". Pena outras "bactérias" estarem, actualmente, interessadas na destruição dum SNS com umas tais raízes.
O Mundo globalizou-se, ao mesmo tempo que se desumanizava!
Isabel Eleutério
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