No início da minha carreira médica comecei a ver Doentes no seu domicílio ao serviço dos então denominados Serviços Médicos Sociais (actuais Cuidados de Saúde Primários). Nestas funções fui dedicando especial atenção aos idosos alojados em lares para a 3ª idade. Foram cerca de 8 anos percorrendo o sofrimento imposto – ou não – aos mais velhos. Algumas dessas casas pareciam autenticas câmaras de horrores, em que a proximidade da morte se percebia a cada passo, em cada rosto vazio, em cada corpo abandonado. O odor de roupa suja e de medicamentos impregnava o ar das salas sem janelas mergulhadas num silêncio sem a Esperança. Aos cantos como bonecos sem corda os velhos esperavam a vez, assistindo já indiferentes ao desbobinar do tempo restante. Havia, no entanto, uma casa em especial que me inspirava preocupação. Era como um armazém de idosos governado por uma megera esquelética e de boca retorcida que pigarreava constantemente o seu tabagismo. Sempre de preto gritava ordens em voz cavernosa a uma ajudante de olheiras profundas a boiarem no meio da tez esverdinhada.
Essa casa tinha um pátio de cimento, nas traseiras, onde, para além de uma mesa plantada num canto onde uns velhos pareciam jogar dominó desde há séculos, havia uma porta de ferro sempre fechada sob a marquise. Uma vez reparei que a chave tinha ficado espetada na tal porta e – abri-a. Lá dentro havia um odor intenso a creolina e no meio da penumbra distinguia-se um vulto disforme que se arrastava, como as focas, pelo chão coberto de imundícies. Era o Francisco. O Francisco não tinha pernas. Tinha um esboço de pernas. Para não ferir os pés, enquanto se deslocava, atava-lhes umas placas de borracha que se assemelhavam a barbatanas. Como era paralítico, da cintura para baixo, para se mover atirava os membros inferiores para a frente, com um golpe de rins, apoiado nos braços fincados no solo. Com a ajuda de uma empregada menos antipática, lavámo-lo, enfiámo-lo em roupa lavada e demos-lhe uma cama num quarto com cinco velhotes como companhia. Explicaram-me (sem me convencer) que tinha ido temporariamente para a cave porque se tornara muito violento. A partir desse momento o Francisco elegeu-me como o seu protector e esperava ansiosamente a minha visita e a oferta de lembranças do exterior. Aquela que maior satisfação lhe deu foi um rádio portátil no qual ouvia, com fascínio evidente, os relatos de futebol. Pediu-me para lhe “tirar o retrato” a ouvir música e a olhar o sol e andou contente e calmo durante muitos meses. Até que um dia fui dar com ele muito nervoso e impaciente. Com alguma agitação avisava que os velhotes tinham morrido na semana anterior porque lhes deram calmantes demais para dormirem e não incomodar. Que os medicamentos que receitávamos não eram administrados ou eram-no incorrectamente. Que todos se calavam com receio de serem os próximos cadáveres. Não queria que eu visse a tensão e auscultasse. Queria antes que eu o tirasse dali para fora. Numa breve investigação não consegui alguma confirmação e percebi que seria, obviamente, muito difícil comprovar a teoria do Francisco. Nesse dia ia partir para férias e tentei acalmar o Francisco prometendo-lhe que quando regressasse iria estar mais atento e eventualmente tomar as providências necessárias.
Foi um Verão com muitos pesadelos em que caravanas de velhos e de velhas me agarravam e puxavam por entre suspiros e, ainda, com o rosto triste e manso do Francisco - quando dele me despedira. Quando voltei não me espantei quando me anunciaram que o Francisco tinha, entretanto, morrido “do coração”. Durante muito tempo carreguei sobre os ombros a interrogação terrível se poderia ou não ter feito mais. Quase um sentimento de culpa e dívida para com o Francisco que nunca passou. Hoje, passados muitos anos, aposentei-me da carreira médica hospitalar e olhando o balanço do que fiz por muitos Doentes, tento resgatar, de certo modo, uma dor funda e antiga. Ouvindo música e olhando o sol, julgo poder dizer-te, Francisco, que nunca mais cheguei tarde.
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Accentus (Samuel Barber) - Agnus Dei