Todos temos uma janela na nossa infância. Essa janela teve/tem um papel importante de entre todas as janelas da nossa Vida. Uma janela por onde espreitávamos sinais do exterior à descoberta de um mundo novo. Lembro-me de ficar ancorado muito tempo àquela janela assistindo ao desfile das vendedoras de água de Caneças sobre o ritmo da flauta do “amola tesouras e navalhas” e à passagem da mulher da “fava-rica”, do homem do “Ferro-velho” e da voz dos cegos cantores ambulantes que distribuíam um folheto que não viam com a história de uma coxinha - acompanhados na sua cantoria pelo som desafinado de um “acordeon”. A rua era animada ainda, ocasionalmente, por uma tenda de fantoches que andavam sempre à paulada uns com os outros sem se perceber porquê e pelos pregões das varinas e das vendedeiras de “figos de capa rota”. E havia o fascínio dos Saltimbancos que surgiam como num filme de Fellini, envolvidos no estrondo de tambores e no sopro estridente de instrumentos de metal.
Estendiam um enorme tapete colorido, que imaginava oriundo de alguma cidade misteriosa do longínquo Oriente, sobre o qual actuavam o engolidor de espadas e soprador de fogo, bem como uma rapariguinha de aparência frágil e com olhos tristes que fazia contorcionismo. Antes de um rapazinho de boné na mão vir recolher a generosidade alheia - tinha lugar o número final: A célebre “Dança da ursa”. Então, ao som de uma música impossível, uma forma vagamente humana, vestida com um fato coçado a imitar um urso, bailava em círculo com uma corrente, atada a uma das pernas, conduzida por um domador de bigodinho à Errol Flynn.
Para além do som distante do circo que passava à frente da minha janela da infância, guardo na memória algo que tinha muita importância. As outras janelas que avistava da minha. Interrogava-me sobre as pessoas por detrás de cada vidraça. Que alegrias, tristezas, emoções se estariam a passar, naquele mesmo momento, no interior de cada casa. Durante a noite dormíamos afinal na mesma rua separados pelas janelas. Imaginava os prédios de repente transparentes e as eventuais histórias, ambientes e cores. Pessoas que ora riam, amavam, choravam ou sonhavam. Mas como não era assim restava-me tentar decifrar os vultos por detrás dos cortinados ou recortados pela luz que vinha do interior das vidraças.
Havia no entanto uma janela especial no 3º andar, do prédio azul, mesmo em frente. Era especial desde o dia em que se abrira para deixar passar uma jovem adolescente de cabelos longos que sorria. Sorria sempre como uma princesa que acabava de sair de uma história do jornal infantil que eu lia: "O Mundo de Aventuras". Consegui saber que se chamava Ana Paula e estranhei uma sensação nova e inexplicável. Quando olhava aquela janela sentia um bater de asas dentro do peito e uma emoção que antes nunca experimentara. Associava então a sua imagem à canção "Amapola" que se ouvia na telefonia interpretada por vozes como Tito Schipa, Luis Alberto del Parana & Los Paraguayos, os Lecuona Cuban Boys, ou os Cinco Latinos. Talvez porque a palavra Amapola quase faz lembrar Ana Paula. Aliás era só substituir na letra da canção Amapola por Ana Paula (embora Amapola signifique: papoila - em espanhol, língua em que a canção foi inicialmente composta).
De vez em quando lembro-me e regresso à janela da minha infância… onde se reflecte outra janela.
Todos temos uma janela aberta sobre a nossa infância. Todas trazem sobre o parapeito um pequeno pedaço da nossa própria história.