segunda-feira, 28 de junho de 2010

A Selva (a propósito da Janela da Infância)

Foto colhida no Jardim Botânico em Lisboa
No jardim da nossa Infância há outras janelas de onde também sonhávamos o mundo. O sonho era possível não só à janela que dava para a rua mas também no isolamento do nosso quarto a ler um livro que trazíamos da estante dos crescidos, ou no alto de uma árvore. Umas vezes víamos o mundo “lá fora” a desfilar à janela e em outras ocasiões era o mundo “cá dentro” que passava no ecrã da nossa imaginação. Hoje, porém, lembrei-me da minha primeira árvore. Mais precisamente: sonhei com ela e, em consequência, resolvi visitá-la. Era uma nespereira que reinava num canto do quintal dos meus avós. O quintal ficava nas traseiras do rés-do-chão de uma rua lisboeta e era como um oásis rodeado do emaranhado de ferro das “escadas de serviço” unindo os prédios do quarteirão. O azul da infância inundava aquele quintal tranquilo e eu sonhava enquanto subia para o alto nos ramos da nespereira. Sonhos verdes e castanhos em direcção ao sol. Depois de uma fase de gnomos, fadas e coelhos bem-falantes, a árvore transportou-me para a selva africana. Um pouco mais crescido e influenciado pelo jornal infantil “O Mundo de Aventuras” depressa entoava o grito do Tarzan. Perscrutando montanhas mágicas longínquas, para além da savana, chamava a Chita ou os elefantes para me ajudarem a salvar o Tarzan, das lanças de uma tribo hostil, das garras dos leopardos ou de outros perigos da selva. Claro que sonhava também que um dia encontraria o Amor e a companhia de uma Jane que passasse perto da minha árvore. Como disse, hoje fui procurar a minha primeira árvore. Depois de conseguir transpor obstáculos que antes não existiam (outros prédios, muro e portões) consegui finalmente encontrar a nespereira da minha infância. Quase escondida num canto e rodeada de betão armado pareceu-me outra, mais pequena, suja e triste. Não contive porém a emoção e abracei-a como quem abraça um ente muito querido que não se vê há muitas décadas. As lágrimas soltaram-se naturalmente mas, no meio da alegria do momento, consegui no entanto perceber, como quem rebobina o filme da sua vida do fim para o início, que a selva (de onde acabava de chegar) era outra diferente da que imaginara e que, eventualmente, o menino que sonhara, no alto dos ramos daquela árvore, pretendia, ainda sem saber na altura, afinal salvar-me no futuro. Foi muito importante ter voltado aos ramos daquela nespereira e sentir que se tratava de um reencontro desde sempre previsto. A minha árvore da infância será sempre verde no sonho sonhado agora.

Llorando - Rebekah Del Rio Versão em espanhol da canção “Crying” (1962) de Roy Orbison (BSO do filme Mulholland Drive de David Lynch) 

4 comentários:

Anónimo disse...

Caçador de Raízes

“Eu pertenço à fecundidade
e crescerei enquanto crescem as vidas:
sou jovem com a juventude da água,
sou lento com a lentidão do tempo,
sou puro com a pureza do ar,
escuro com o vinho da noite
e só estarei imóvel quando seja
tão mineral que não veja nem escute,
nem participe do que nasce e cresce.

Quando escolhi a selva
para aprender a Ser,
folha por folha,
estendi as minhas lições
e aprendi a ser raiz, barro profundo,
terra calada, noite cristalina,
e pouco a pouco mais, toda a selva.”

Pablo Neruda, in O Caçador de Raízes

Belíssimo registo fotográfico, Bonitas e Enternecedoras Memórias…

FC

Maria Gotte disse...

"I frequently tramped eight or ten miles through the deepest snow to keep an appointment with a beech-tree, or a yellow birch, or an old acquaintance among the pines."

Henry David Thoreau

Algumas árvores tem a capacidade de fazer o coração lembrar...uma vez que o coração tenha a capacidade de guardar lembranças!
Uma estória aliciante e enternecedora ilustrada por uma mágnifica fotografia e uma perfeita escolha musical!

São

Anónimo disse...

As arvores, exercem sobre mim um fascinio muito especial....principalmente aquelas que poderão ter significados tambem especiais. Todos lembramos certamente de algumas arvores que fizeram parte de momentos da nossa história pessoal e que crescendo, de certa maneira acompanharam o nosso crecimento....
Arvores são simbolos de Grandeza, de Força, de Presença, de Energia, de Resistência, de Vida....., de Ternura, de Segurança........., da Natureza.

Gosto particularmente dos pequenos ramos verdejantes que brotam dos braços castanhos já um pouco envelhecidos; gosto dos finos ramos secos que a propria natureza se encarregará se reciclar e muitas vezes transformar em construções unicas e espantosas (os ninhos); da sombra que nos protege, do cheiro a verde....

É bom, sentir que ainda posso "fazer das lembranças um lugar seguro", onde me refugiu e distancio da "outra selva".....

Sinto muita Ternura e Encanto, na simplicidade desta foto. Parabens e Obrigada.
Abraço
AC

VT disse...

Obrigado pela sempre presente poesia e simpatia de FC, pelas palavras certeiras e sensibilidade transmitidas pela São e pelas reflexões e emoções de AC.
Bem hajam
VT